O Legado Imortal de Mestre Florêncio: Uma História de Paixão, Dedicação e Mistério em Itapetininga

Antonio Florêncio de Azevedo, afetuosamente chamado de Mestre Florêncio, deixou um legado inestimável na história de Itapetininga. Sua trajetória multifacetada como soldado, carpinteiro, pedreiro, músico, animador de festas e fogueteiro moldou profundamente a identidade da cidade.

Dentre seus principais talentos, destacavam-se a música e a construção civil, áreas em que ele demonstrava verdadeira paixão e excelência.

Ele não apenas ergueu os pilares do Teatro São João, que hoje é o imponente prédio da Loja Firmeza, mas também deixou sua marca em outros monumentos importantes da cidade, como a Igreja Nossa Senhora do Rosário dos Pretos e o Clube 13 de Maio.

Sua contribuição ultrapassou as construções físicas; Mestre Florêncio foi um mestre na arte da música, fundando uma das primeiras escolas de canto e música na região.

Nas páginas do livro “Itapetininga e sua História” de Galvão Júnior, somos transportados para a época em que Mestre Florêncio caminhava pelas ruas da cidade, reconhecido não apenas por suas habilidades técnicas, mas também por sua humildade, honestidade e generosidade. Seu legado musical se estendia para além das paredes da escola que fundou; ele regia o coral da igreja matriz e do Rosário, moldando jovens talentos e emprestando sua voz à fé e à cultura local.

Um verdadeiro exemplo de dedicação e versatilidade, este homem se destacava em qualquer tarefa ou profissão que lhe fosse atribuída. Seja na limpeza de quintais, no trabalho agrícola, na manutenção da higiene geral, na entrega de encomendas ou na cobrança, ou ainda atuando como auxiliar de pedreiro sob a orientação de um engenheiro civil, ele demonstrava uma habilidade excepcional.

Sua ética de trabalho era admirável: nunca recusava uma incumbência e a realizava com diligência, satisfação e integridade. Além disso, sua abordagem justa aos preços, baseada na capacidade financeira do cliente, como descrito por Galvão Júnior em seu livro, o tornava ainda mais respeitado e admirado na cidade.

No entanto, a trajetória de Mestre Florêncio não foi marcada apenas por sucessos e elogios. Em uma carta emocionada, ele expressou sua profunda tristeza diante do que considerava um boicote à sua respeitada escola de música. O desabafo foi publicado no Diário de São Paulo, na edição 1178 de 6 de agosto de 1869, sob o título “Itapetininga”, revelando sua sensação de desvalorização por parte daqueles a quem dedicou tanto tempo, ensinamentos e cuidados.

Itapetininga

O mestre Florencio

Preciso dar uma satisfação a mim mesmo, e quero dal-a publicamente.

O silêncio, em certas ocasiões, não satisfaz.

Quando não se póde chorar, falla-se. É o remédio das dôres moraes.

Velho, ainda conservo a alma de criança. As cans revelão a velhice do corpo, e a mocidade do espírito. Aquelles, pois, que acreditão encontrar em mim uma entidade inútil, ou um ente sem valor, não compreendem que se não me é dado lutar corpo a corpo com eles, posso falar-lhes frente a frente, com a franqueza que me caracteriza, tudo que penso e sinto. É a razão desta publicação.

Desde 1856, moro nesta cidade. Aqui chegando, não encontrei música, fundei-a. Com habilitação ou sem ella, fiz-me mestre, e o que é mais, tive discípulos, que, esquecidos das lições do mestre, querem agora devoral-o. Iniciei a ideia da elevação do jazigo; transformei a igreja matriz; construo hoje a igreja do Rosário. Vivo do meu trabalho. Se não faço favores, também não os peço. A minha vida, resume-se nessas palavras: trabalhar para viver.

Se os serviços que tenho prestado a Itapetininga não são daqueles que provocão a gratidão publica, também não devião servir de motivo para se crear embaraços ao homem velho que quer caminhar, tendo um único fim – cumprir seu destino. Entretanto, assim não acontece. Fiz musicos, e estes voltarão-se contra mim. Mestre de capella, sem interesse, ensino meninos para cantar no côro; os pais tirão-n’os depois de promptos, para mimosearem outro mestre. Agora funda-se uma sociedade particular, cuja missão é: acabar commigo. Pois bem, é chegada a occasião de dizer: Lutarei até o fim. Com ameaças não conseguirão abater-me o ânimo.

A experiência me ensina, e o evangelho diz: Há uma virtude que eleva o homem, é a resignação. Eu a possuo.

Ás vezes falta-me a paciência, a resignação, nunca. Lutem contra mim, fundão associações, tirem da escola meus discípulos, e até ordenem que minha escola de música seja fechada. Não fugirei, por isso, de Itapetininga, deixarei, quando muito, a cidade. Quando não puder bater o compasso nos povoados, baterei no campo.

A minha voz, perdida no espaço, revelará que não morre quem canta.

28 de julho de 1869.

Antonio Florencio de Azevedo.

A carta de Mestre Florêncio encontrou eco na sociedade da época, como evidenciado pelo comentário publicado no Diário de São Paulo, edição 1212 de 18 de setembro de 1869, assinado por um defensor sob o pseudônimo “O Imparcial”.

Uma publicação deste cidadão, inserta no Diário de S. Paulo sob a epigraphe—Itapetininga—despertou nossa apreciação sobre a matéria que fôrma o seu objecto e por isso mesmo um juizo severo e imparcial.

O mestre Florencio tem sobeja razão queixando-se das ingratidões e falta de reconhecimento que tem recebido em recompensa dos valiosos e relevantes serviços que ha feito nesta cidade, desde que para aqui veio habitar, e principalmente desde que occupa na igreja o emprego de mestre da capella, pois que o seu zelo o dedicação pelas cousas da igreja são tão conhecidos, que ninguém poderá contestar esta verdade.

Mas, procurando a imprensa como um desabafo ás suas maguas, foi modesto, pouco tratou de si, apenas queixou-se das ingratidoes de que tem sido victima, calando os serviços que tanto o recommendão. Fez muito bem o mestre Florencio.

Quando o homem falla de si, não devo endeosar-se, ao contrario deve ser prevenidamente recatado para não incorrer no ridículo, pois que a apreciação do seu merecimento não lhe pertence.

Ao passo que lemos o justo desabafo do mestre Florencio manifestado pela imprensa, nos suggerio os valiosos serviços por elle prestados a bem do progresso desta cidade.

Ahi está a igreja do Rosário que só por si attesta a verdade. Este projecto de templo, collocado em um lugar pittoresco, sendo começado, ahi estava abandonado ha mais de trinta annos, ficando as taipas em meia altura. Jamais ninguém teve a feliz lembrança de tomar a si esta obra, e leval-a a effeito ; isto é, pôl-a a salvo de uma perda total, porque as taipas abandonadas por tão grande espaço de tempo, quasi descobertas e sem trato algum, ameaçavão ruina.

Estava reservada para o mestre Florencio, que apezar de alquebrado por mais de setenta Janeiros, tem força de vontade para vencer difficuldades, que a um moço seria impossivel.

Compenetrando-se daquella necessidade, excitado pela pureza dos sentimentos religiosos que o caracterisa, pôz o mestre Florencio mãos á obra sem ter um só vintém disponivel, mas recommendou-se á coadjuvação dos fieis, já esmolando pessoalmente, já carregando a Imagem de Nossa Senhora do Rosário em charolla, de porta em porta, pôde conseguir o resultado para deixar a capella no estado em que se vê, coberta, faltando somente o corpo da igreja, de modo que com mais um esforço estará a bella o espaçosa capella nos termos de se prestar á celebração do culto religioso.

O mestre Florencio, com a força de vontade que o distingue, pois que é um destes paulistas teimosos e fanáticos pelas cousas da igreja, tem sempre se esmerado em dar todo o esplendor aos actos sagrados que nella se celebrão,

Não falta com a sua musica no coro por occasião das missas de Nossa Senhora aos sabbados. Da mesma fôrma nos domingos e dias santos, está sempre presente para entoar os hymnos sagrados, com acompanhamento de instrumentos, na estação das missas conventuaes, tornando assim aquelles actos sagrados dignos da magestade e grandeza que inspirão.

Todas as vezes que os sinos annuncião a sahida do Sagrado Viatico, em soccorro de algum enfermo, seja a hora que fôr, logo ahi está o mestre Florencio em frente com o seu coro musical solemnisando o acto e abrilhantando o prestito.

E’ incançavel o mestre Florencio, é solicito por demais no zelo e bom desempenho que emprega no cumprimento fiel dos seus espinhosos deveres, para o que não lhe pesão nem os annos, nem as enfermidades.

Ainda não é tudo. O mestre Florencio depois que chegou a esta cidade inaugurou as festas que até então não se fazião e nem era possivel, mesmo pela falta absoluta de musica, como por exemplo, a importante festa da semana santa, e outras, que até hoje se fazem annualmente.

Estabeleceu uma aula de ensino musical, gratuito, que até hoje está em effectividade : nella são recebidos todos os jovens que seus pais lhe confião para receberem o ensino ; nunca se negou a ninguém, e della tem sahido músicos que estão sendo aproveitados, e tudo sem perceber a mínima vantagem pecuniária.

Tudo isto o mestre Florencio tem feito, além de outros serviços que longo seria mencionar, e tudo por amor ao progresso, e consciência do dever, como homem prestimoso, bom cidadão e bom catholico.

E, pois, o mestre Florencio se não é um homem necessário, é á toda prova um homem útil, pelo que tem incontestável direito á gratidão, e geral reconhecimento.

Assim, não ha de o mestre da capella Antonio Florencio de Azevedo, a quem o povo de Itapetininga tanto deve, fechar a sua aula musical, e muito menos bater o compaço no campo, inutilisando a sua voz sonora no vasto espaço.

Ha de sempre, a despeito do que tem soffrido, continuar a bater o compaço no próprio côro, entoando os hymnos sagrados em honra e louvor do Ser dos Seres, com a mesma devota dedicação como até aqui, e a vossa voz não será perdida.

Finalmente, continue o mestre Florencio na mesma resignação que tem : esta é uma virtude evangélica, quo elle a possue em subido gráo ; siga o mesmo caminho trilhado, que um dia receberá a justa recompensa de tantos e tão valiosos serviços.

28 de Agosto de 1869.

O imparcial.

Esse apoio não apagou, no entanto, as sombras que pairavam sobre o destino de nosso herói.

Alguns anos se passaram e segundo histórias contadas de geração em geração, ele já não exibia a mesma alegria de antes, e em 1874, durante uma de suas caminhadas diárias, Mestre Florêncio desapareceu misteriosamente.

Itapetininga mobilizou-se numa busca frenética, com o apoio da polícia e da imprensa unindo esforços, mas o Mestre nunca foi encontrado. O que aconteceu naquele dia ainda é um mistério que intriga os historiadores até os dias de hoje.

A história de Antonio Florêncio de Azevedo, é um verdadeiro tesouro para a cidade de Itapetininga e para todos nós que temos o privilégio de conhecer sua trajetória. Ao ler sobre suas realizações, sua paixão pela música, sua dedicação à comunidade e as dificuldades que enfrentou, somos levados a refletir sobre as lições que essa história nos ensina.

A vida de Mestre Florêncio nos mostra a importância do comprometimento e da perseverança em nossos objetivos, mesmo diante das adversidades. Seu legado vai além das construções físicas que deixou para a cidade; ele nos ensinou sobre generosidade, humildade e amor pelo que fazia. Mesmo nos momentos difíceis, como o desafio de ver sua escola de música ameaçada, ele manteve sua dignidade e firmeza de propósito.

Em sua carta de desabafo, Mestre Florêncio expressou com sabedoria:

“A minha voz, perdida no espaço, revelará que não morre quem canta”.

Essa frase ressoa como um lembrete poderoso de que nossas contribuições e nossas ações na sociedade têm o poder de transcender o tempo e deixar um impacto duradouro na história.

A Loja Firmeza, ao preservar a memória e o legado do Mestre Florêncio, torna-se não apenas guardiã da história, mas também um símbolo do valor do reconhecimento mútuo e da gratidão. É importante lembrarmos que nossas ações e escolhas deixam marcas na comunidade e que devemos valorizar e perpetuar os ensinamentos e as conquistas daqueles que nos precederam. Que possamos, assim, aprender com o passado e construir um futuro baseado no respeito, na gratidão e na valorização das contribuições de cada indivíduo para o bem comum.

Afinal, são esses valores que constroem uma sociedade mais justa, solidária e próspera para as futuras gerações.

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